Sempre tive certo encanto por diários. Ler o diário de outra pessoa é uma maneira de estar muito próximo de sua vida, sua rotina, seu dia-a-dia. Talvez seja uma das possibilidades de "representação" do aqui e agora de determinado sujeito sem qualquer pretensão. Diários geralmente são íntimos, particulares, portanto, sem a expectativa da grandeza, do espetáculo, da encenação dos reallity shows. Se alguém escreve um diário prevendo que este seja a chave de um enigma, ele já perdeu a vocação, já possui outro fim. Li o Diário de Andy Warhol inteiro e várias vezes, embora não se trate exatamente de um diário: trata-se de uma transcrição de conversas que ele mantinha com sua assistente, Pat Hackett, que compilou e publicou essas transcrições após a morte do artista. Segundo a editora, ela fez uma seleção, dentre muitos milhares de páginas, para algumas centenas que pudessem expressar o cotidiano do artista com a máxima fidelidade possível. Mas, nunca saberemos se não se trata de uma interpretação parcial feita pelo "outro". Recentemente caiu em minhas mãos outro diário. Quando a Escola de Belas Artes de Pelotas completaria 60 anos, a neta de sua fundadora, que herdou da avó todos os documentos sobre a Escola, disse que cumpriria a promessa feita: escreveria um livro e depois queimaria tudo. Fiquei atônito imaginando o que viria pela frente. Para minha surpresa, alguns meses depois Janice de Moraes Pires publicou, quase na íntegra, os diários de sua avó: "Memórias de Marina", que são os diários de Dona Marina de Moraes Pires, fundadora da EBA. O diário mistura vida privada com o envolvimento institucional da autora, imbuída de determinação para fundar uma escola de arte em Pelotas, e apresenta um retrato sobre o estilo de vida em certo período do século XX - de 1949 a 1972 - na cidade de Pelotas: as relações com a família, as preocupações com os filhos, o trato com os professores e os alunos, os artistas que viviam em Pelotas nesse período, além de relatos que nos fornecem uma impressão bastante rica da cidade naquela época: os cinemas, as missas, os restaurantes, as férias, as viagens, a cascata, os verões, os invernos... Enfim, um relato sem pretensões que registra aquele cotidiano. Volta e meia gosto de pegar esses diários a esmo e dar uma folheada, comparar o meu dia, com o mesmo dia há décadas atrás e ficar relendo aqueles dias. É uma narrativa sem grandes transformações, sem grandes enredos e é por isso mesmo que me atrai: as mudanças são aquelas cujo principal protagonista é o tempo que passa. Mas foi uma incrível coincidência que me fez pensar em tudo isso. Outro dia vi uma imagem que Dorotea Kremer postou no Facebook: Ophélia, de Sir. John Everett Millais. É uma pintura linda e tive a impressão de já tê-la visto, talvez na Tate Gallery. Lembrava muito do nome do autor, porque já havia escrito esse nome em minha vida. Lembrava de uma pintura dele que havia retido minha atenção na Tate Gallery em meio àquela infinidade de pinturas. Nossas visitas de turistas a museus em geral não permitem observações muito demoradas. São poucos dias, muitos museus e poucos objetivos para ver coisas específicas, mas eu sempre carregava uma caderneta para anotações e uma câmera fotográfica, para registrar o que fosse possível, por isso lembrava o local e o nome do artista. Curiosamente, não tinha certeza sobre a imagem. Passaram-se uns dois dias desde que vi e comentei esse post e tive que fazer uma mudança na área de serviços do meu apartamento. Para minha surpresa, abro uma caixa e encontro três pequenos cadernos, comprados numa livraria japonesa que conheci em Londres e mais tarde em Nova York chamada Muiji. Os cadernos são deliciosos, fininhos, tem capa marrom - aquele tom de papel pardo - com uma lombada cinza escuro ou marrom mais escuro e incitam à escrita. Abri o primeiro deles e as anotações da primeira página eram as seguintes:
Despesas no cartão
Londres - 01.09.98 £11,15 Muji
Tate Gallery.
Sir John Everett Millais
"Ophélia"
Continuei lendo o caderno que misturava informações, preços para controle de despesas, dados sobre registros fotográficos de obras de arte - naquela época a Internet ainda era uma coisa distante, então viajava e fotografava em filmes de slides para apresentar nas aulas depois. Passei para o segundo caderno e este sim era, de fato, um diário de viagem. Reli inteiro com a mesma avidez que leio alguma obra qualquer, com a diferença de que conseguia relembrar muitas coisas e não fazer a menor idéia de outras. Parece ter sido ontem, mas lá se vão exatos 13 anos. Consigo perceber em linhas gerais o que eu era naquela época, como era uma viagem, que mudanças ocorreram daquela data até hoje. Ainda havia uma menção freqüente a "comprar cartões e enviá-los por correio", uma prática que hoje está quase extinta, na medida em que conseguimos nos fazer presentes a quem está distante de maneira muito mais rápida e barata pela Internet. Lembrei que estava em Londres para conhecer o Pharmacy, restaurante-obra-instalação de Damien Hirst. Estive lá com dois amigos, Débora e Charles, que vivem em Londres até hoje, e escrevi minhas impressões sobre o lugar e sobre a arte contemporânea em 1998. Escrevi rapidamente sobre Londres, observações triviais de turista, capaz de se deter sobre coisas irrelevantes e achar que são significativas pela necessidade de estabelecer as primeiras referências num lugar ainda estranho. Finalmente, me vejo como alguém de 29 anos que vaga alegremente por Pubs e baladas em busca de encontros e desencontros possíveis: os encontros por acaso com amigos brasileiros em Covent Garden, o reencontro com amigos ingleses que conhecera um ano antes, os desencontros com Débora, que estava me hospedando e esqueceu de deixar a chave, uma noite vagando com Eduardo Chafe atrás de um hotel "bom e barato" ao invés de um "bed and breakfeast"... Enfim, verdadeiros pedaços, fragmentos, de um momento que já estava esquecido. O que me lembrou imediatamente a fala final de Paul Bowles no filme "O céu que nos protege", na qual ele menciona algo relativo a nossas pequenas lembranças perdidas na memória, sem as quais não seríamos o que somos hoje - e completa com uma observação relativa a nossa ilusão de infinitude. Quando fiz minhas primeiras tentativas de escrever num blog, ainda não tinha muito claro de como seria e do que se tratava, o que ainda hoje busco compreender melhor, embora não escreva muito. Intuo de que um blog seja algo que permita uma interlocução e se destine, de alguma maneira, "a um leitor". Sei que alguém poderá ler o que estou escrevendo, então "atuo" de certo modo. Um diário é diferente disso, e talvez seja por isso que diários me atraem: diários não têm a pretensão de serem lidos, são íntimos. O que é diferente de secreto. Não acredito que alguém escreva segredos em diários, até mesmo porque segredos a gente esconde até da gente mesmo. São apenas isso, relatos íntimos, um relato feito para o próprio sujeito que escreve entender as suas coisas, um movimento semelhante a se olhar no espelho: a gente pode se olhar a qualquer momento, quando se acha feio ao acordar pela manhã, quando se sente bonito ou feliz... A diferença é que a imagem do espelho é uma impressão fugaz e o diário é um registro de impressões. Então tento entender com certa nostalgia porque não escrevo um diário, ou porque não envio mais cartões quando viajo. Acho que é simples: porque as coisas mudam, a gente estabelece algumas prioridades, faz algumas escolhas – mesmo que essas escolhas sejam condicionadas. Até que um dia somos capazes de retomar, a partir de uma imagem no Facebook, um caderno que estava escondido no fundo da área de serviços e resgatamos uma torrente de lembranças que nos faz reavaliarmos se o que estamos fazendo é realmente importante e se não é possível retomarmos algumas coisas que foram deixadas pelo caminho. Assim, a vida parece deixar de ser um continuum linear e pode ser entendida como uma sobreposição possível de lembranças, sensações, impressões de diferentes lugares, em diferentes momentos e com diferentes pessoas – todas elas, partes constitutivas e imprescindíveis de nossa existência, sem as quais – retomando Paul Bowles – não existiríamos. Talvez diários catalizem essas impressões.
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