"Ora, o processo de restabelecimento da saúde que começa então implica, em nome de sua eficácia, que não haja nenhum obstáculo à transparente relação que está por estabelecer-se entre o possuidor do saber - o médico - e "seu" objeto, ou seja, o "meu" corpo. Noutras palavras, tudo se passa estranhamente como se o êxito da cura exigisse a princípio o afastamento do enfermo, enquanto pessoa, à posição, tão silenciosa e mansa quanto for possível, de um simples observador. Nisso exatamente consiste o que se chama "coragem" diante da doença: saber manter-se à distância, pois - deve-se compreender - o fato de sofrer em alguma parte de si mesmo não constitui motivo suficiente para interferir, com o risco de atrapalhar aqueles que sabem verdadeiramente de que se trata! Mas, felizmente, ao passo que o dispositivo actancial assim imposto exclui que o "objeto" (o corpo dolorido) seja confundido com o "sujeito" (da dor realmente vivida), esse último - o doente -, ao queixar-se de seu corpo quase como se ele fosse uma coisa distinta da sua própria pessoa, é, ele mesmo, o primeiro a objetivá-lo".
Eric Landowski, Viagem às nascentes do sentido.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
A espera
Acabou o assunto. Mas, seja lá como for, escrever ainda é uma das coisas que tem me ajudado a retomar a vida no ritmo possível. Como havia afirmado, e volto a fazê-lo, a sensação que melhor define o estado de alguém - digo isso por mim - que acabou de passar por uma cirurgia de proporções razoáveis é de "estranhamento". Não se tem muita certeza se se está bem, se os desconfortos ainda são seqüelas da cirurgia, se alguma coisa não está bem e poderá se agravar ou se a vida vai ficar igual, pior ou melhor ao que era antes. A gente está com um corpo meio novo, com o qual ainda não estava acostumado. Isso no plano bem concreto. Num grau mais abstrato ou metafísico a idéia de ter estado conscientemente próximo da morte aumenta ainda mais essa sensação de estranhamento. Antes dessa experiência da cirurgia - e depois dela também - sempre pensei da seguinte maneira: viver é um estado de risco permanente, mas a gente não pensa nisso. Cada vez que vou ou volto de carro de Pelotas para Porto Alegre cruzo na estrada com mais de uma centena de veículos que vão no sentido oposto, cujo motorista desconheço, assim como as condições mecânicas do carro ou o que mais possa colocar minha vida em risco. E os jornais estão recheados de casos de automóveis que "se desgovernaram", invadiram a pista oposta e estraçalharam o coitado que vinha feliz da vida e sem fazer nada errado. É o princípio do acidente. Alguma coisa não prevista acontece de maneira inesperada causando - geralmente - um estrago. Mas a gente não pensa nisso cada vez que vai na padaria, senão ficaria em casa - de preferência no campo e com um pára-raios! - para evitar qualquer fatalidade. Lembro da entrevista de algum daqueles artistas que morreu no final dos anos 1980 ou início dos 1990, no auge da AIDS, falando mais ou menos a mesma coisa: que todo mundo um dia morreria, mas estar com AIDS era conviver com essa idéia diariamente, a cada minuto. E de fato, estar com AIDS naquela época era estar na fila de entrada para o cemitério! E é mais ou menos essa a sensação de passar por uma experiência de risco conscientemente. Mas talvez tudo isso venha à tona pelo simples motivo de estar tentando fazer a vida voltar ao "normal", ou melhor, voltar ao cotidiano. A gente sai do hospital, o médico nos manda pra casa fazer repouso, ficar quieto e esperar. E essa é a coisa mais difícil: esperar. Como hoje tudo é rápido, instantâneo e possível, esperar virou um martírio. Haja livro, filme ou You Tube que saciem nossa ansiedade. Nada adianta, nada acelera. E é assim mesmo. E tem que ser. Lembro que um dia fui visitar a plantação de Fred Karam. Ele planta diversas espécies de palmeiras incríveis e me contou sobre o quão diferente era a noção de tempo do universo daquelas palmeiras para o mundo em que vivemos! Perguntei para ele como se "fazia" uma palmeira e ele me disse que através da semente, que é aquele coquinho que tem dentro do butiá. Ele pode demorar sei lá quantos meses pra germinar, e mais muitos outros até nascer a primeira folha, e por aí vai uma conta a perder de vista. Assim, nosso corpo também tem lá suas restrições e exigências, apesar dos avanços científicos. Lembro também de uma conversa sobre procedimentos cirúrgicos ou odontológicos que estava tendo com um grupo de amigos quando exclamei que, apesar de todos esses avanços, tais procedimentos ainda eram muito arcaicos. Ao que Daniel Acosta simplesmente rebateu: "arcaico é o corpo". E é. Então cá estou eu, reclamando como se fosse o único ser vivo que precisou passar por uma cirurgia, e como se tivesse sido a cirurgia mais grave do mundo, quando centenas e milhares de pessoas fazem isso e coisas bem mais complicadas todos os dias. Mas, cada um pensa ou tenta elaborar essa experiência do seu jeito. E o meu talvez seja percebendo apenas o óbvio e tendo que enfrentar essa ansiedade da reconquista de um cotidiano no qual já estava viciado, sem perceber. Só agora pude ver na minha frente, por exemplo, uma estante abarrotada de livros que fui comprando "para um dia que tivesse um tempinho ler". E ali estão todos, sem conseguir me arrebatar. Peguei um deles. Já lido e relido. Adoro rever coisas que gosto. Compro filmes e vejo várias vezes, releio textos ou artigos. Até mesmo e-mails. O livro que peguei chama-se "Corpo e sentido". Trata-se de uma coletânea de artigos de semiótica, dentre os quais um de um autor que admiro muito e que felizmente tive a oportunidade de conhecer e manter contato: Eric Landowski. O artigo chama-se "Viagem às nascentes do sentido" e é bastante elucidativo no que diz respeito à relação que mantemos com nosso corpo e com a ciência. À tarde, retomei as sessões de fisioterapia com um novo fisioterapeuta em Pelotas. Foi um bom momento do dia. À noite, minha mãe veio ao apartamento e montou a árvore de Natal e isso também foi ótimo. Sob a árvore, coloquei os vários presentes e recados e mensagens que as pessoas me trouxeram nas últimas semanas. E assim vai-se construindo essa espera até o dia em que não se perceba mais nada e o cotidiano apenas flua com todos os mesmos problemas e conflitos de sempre.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
A volta
Meu retorno para Pelotas havia sido programado para quinta-feira. Assim, minha irmã foi na quarta para Porto Alegre, acompanhada de meu sobrinho para que eu e minha mãe, que permanecia lá comigo, pudessemos voltar bem acomodados, trazendo toda bagagem e sem depender de horários, táxis e essas coisas todas que se tornam um empecilho quando temos qualquer tipo de limitação. Liguei para meu médico e ele disse que gostaria de me ver mais uma vez antes do retorno, e isso seria possível apenas na sexta-feira pela manhã. Ok, então os planos foram alterados. De qualquer maneira na quinta fui até o Instituto de Cardiologia levar os doces de Pelotas que havia mandado fazer para dar como forma de agradecimento e atenção àquelas pessoas que haviam me acompanhado durante o período em que passei ali. Todos os doces em embalagens bonitas, com cartões de agradecimento pela atenção, dedicação e paciência dispensados. Já estava fazendo fisioterapia e retomando as forças com a cautela necessária e movido pelo interesse em me ajudar a avançar no que fosse possível, ao invés de ficar entregue sobre uma cama ou um sofá o dia inteiro. Havia selecionado uma quantidade enorme de livros, mas não consegui lê-los. Estranha essa relação da gente com os livros, dos momentos e estados de espírito que eles podem suscitar. Acabei lendo algumas coisas mais técnicas e deixando de lado as Lispector, Proust e Freud que havia selecionado. Ao chegar no Instituto de cardiologia fui direto a UPO e apareci na porta com as caixas. Foi um momento comovente ser reconhecido pelos técnicos, enfermeiros, médicos e funcionários que trabalham lá e que vieram até mim "perguntar se eu já ia embora"! Respondi que já havia ido, mas havia retornado para entregar para eles aquela lembrança simbólica pelos cuidados que eles prestaram a mim durante aqueles dias. E tenho a impressão de ter percebido uma espécie de felicidade brotar nos olhos de cada um deles, nem sei bem porque. Mas eu vi isso. Talvez porque eu estivesse bem; talvez porque eu tivesse vindo agradecê-los; talvez porque eu tivesse simplesmente lembrado deles. Me disseram que Seu Geraldo havia sido sumbetido a outra cirurgia e naquela tarde iria para o quarto. Também passei na secretaria da cirurgia e deixei doces para os médicos que me acompanharam. Na sexta-feira pela manhã, voltei para a consulta com Dr. Rossi. Como sempre ele foi agradável, conversamos sobre vários assuntos, ele me examinou e disse que meu quadro estava evoluindo muito bem. Brinquei com ele sobre meu "gerador de impulsos cardíacos" e disse que agora eu era movido a bateria. Que começava achar aquilo tão seguro que, mesmo que uma pessoa morresse, o coração iria continuar batendo! Planejamos as próximas consultas e procedimentos. Saí da consulta e passei no quarto de Seu Geraldo, que era dividido com outros três pacientes. Ele estava frágil, mas sentado. Me viu, reconheceu, me chamou pelo nome: "Lauer!" e disse que em breve iria para casa. Disse para ele que já estava bem e ia embora naquele momento, mas antes passei por ali para deixar para ele uma lata de bolachinhas, lhe desejar melhoras e um feliz 2011. Almocei em Porto Alegre e rumamos para Pelotas. Tive uma sensação de conforto e tranquilidade ao chegar. Pode ser a sensação da volta para casa. Minha mãe me ajudou a acomodar todas as coisas no apartamento e já queria montar a árvore de Natal, mas eu determinei que não, ela estava muito cansada e deveria repousar um pouco. Mães têm esse fôlego! Mas a gente deve ter zelo. Então fiquei só no apartamento, depois de muitos dias sem estar só. Avaliei um pouco minhas limitações momentâneas e acredito que sejam elas que me ajudarão em algumas "escolhas" que talvez eu precise fazer daqui para frente, muito embora eu não acredito muito que a gente "escolha" de forma consciente as coisas. Abri as janelas para deixar entrar o ar fresco do entardecer, sentei numa poltrona e comecei a ouvir Iggy Pop "Les Feuilles mortes".
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Cyborg
Passados os dez dias definidos como prazo para avaliar a evolução de meus batimentos cardíacos, os médicos, sob a orientação do excelente, ponderado e competente Dr. Renato Kalil, vieram conversar comigo para confirmar que seria mais prudente a implantação de um marcapasso definitivo. A questão era a seguinte: meu coração estava ligado a um "gerador" externo, regulado para 40 batidas por minuto; as batidas oscilavam em torno de 50 a 55, ou seja ultrapassavam o marcapasso. O batimento numa pessoa normal é entre 60 e 80 por minuto. Há casos exepcionais, de pessoas que ultrapassam ou não alcançam esses índices e vivem bem. Meu primo comentou comigo que Falcão - o jogador - tinha uma frequência média de 30 batidas por minuto e isso lhe permitia alcançar alta velocidade em campo. Mas o fato não era esse, mas outro: o nível de oxigenação do sangue (tem termos técnicos para todas essas coisas, mas para minha cabeça já era demais). Esse índice de oxigenação em mim estava em torno de 80 a 85%, ou seja, baixo. Então eu corria o risco de ter feito toda a correção da CIA, CIV e EP com a tal cirurgia e continuar na mesma: me sentindo cansado, lento e com uma sobrecarga ao coração. Nesse momento comecei a apelar para o humor. Disse para os médicos que achava o termo "marcapasso" bem démodé, que preferia que fosse um tipo de chip ou então que começassemos uma pesquisa com Steve Jobs para desenvolver um aplicativo para o iPhone que ajudasse a controlar a freqüência cardíaca e os níveis de oxigenação do sangue! Também brinquei com os médicos que só me submeteria a isso se eles me dessem a garantia de viver pelo menos até os cem anos e ainda poder me tornar campeão de tênis!!! Passado isso, na manhã seguinte, sou conduzido novamente para o bloco cirúrgico para instalar o "gerador de impulso cardíaco" - um nome mais técnico para o tal marcapasso. O anestesista conversou comigo e informou que seria um procedimento simples - o ótimo é que lá tudo é "simples" - com anestesia local, eu ficaria sedado e não sentiria nada. E assim foi. Quando acordei ainda estavam com aquele pano azul bloqueando minha visão do corpo, mas finalizando alguma coisa que eu não podia - nem queria - ver. Saí dali e voltei para "meu" bloco dos transplantados na companhia de Seu Geraldo. Era esquisito responder para os médicos ou enfermeiros a pergunta: "Como você está se sentindo agora?" O corpo da gente tem tanto fio, tubo, cano que não tem o que sentir. Não dá pra saber direito nem se o que eu tenho é falta de ar, ou se é a posição meio de cabeça para baixo ou se é um outro fio que sai de algum lugar que a gente nem imagina. A partir daí passei mais dois dias em observação para saber se estava tudo sob controle. Nova bateria de exames, mas parece que tudo ainda não está 100%, pois talvez seja assim mesmo. O organismo precisa se readaptar a algumas de suas funções aos poucos - afinal, foram 41 anos funcionando de uma determinada maneira - com exercícios físicos e respiratórios para começar, gradativamente, a melhorar minha qualidade de vida. Assim espero. Fiquei sabendo, ainda no hospital, que minha amiga Alessandra havia passado por uma situação de alto risco na gravidez e precisou ser levada às pressas para o Rio. O bebê nasceu prematuramente, mas ambos já passavam bem. Liguei do hospital para ela e Tonton e também comecei a ligar e receber ligações de vários outros amigos que sempre estavam pedindo notícias. Isso foi me trazendo, lentamente, ao meu mundo. Ao sair do hospital meu destino, por alguns dias, é o apartamento de meu amigo Brod, que está no Uruguay. Não pude finalizar um auto-retrato para uma exposição que inaugurou no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, em Pelotas, na semana em que fui internado. Mas nesta minha vivência, elaborei um auto-retrato que postarei no blog e FB tão logo tenha concluído, espero que nos próximos dias com um texto que sintetiza toda essa experiência. Minha necessidade de escrita talvez tenha sido uma necessidade interna de sobrevivência, e pode ser muito chata para as pessoas lerem. Já estou começando exercícios com um fisioterapeuta e fazendo caminhadas diárias. Também já comecei a procurar especialistas que possasm tratar minhas cicatrizes e deixá-las o mais discretas possível. Na quinta-feira deverei voltar para Pelotas, minha irmã virá me buscar. Fiz questão de encomendar muitos doces de Pelotas, daqueles mais bonitos e feitos pelas pessoas mais talentosas para distribuir no IC para todos os que direta ou indiretamente me ajudaram. Soube que Seu Geraldo havia comentado "que seu companheiro de quarto o havia ababndonado". Mas eu também passarei por lá antes de partir. Ainda estou pensando na celebração que pretendo realizar para todas as pessoas que de qualquer maneira manifestaram seu apoio, solidariedade e força neste momento, porque eu devo muito da minha capacidade de sobrevivência à crença que elas depositaram em mim! E como já havia afirmado anteriormente, não acredito em grandes redenções, mas em sobreposição de sentidos. Sou um semioticista. Saí do IC vestindo calça levi's e sapato comprados em NYC, camisa A|X, óculos D&G. Mas muitas outras coisas haviam sido sobrepostas aos sentidos que eu dava para vida.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
O vôo do cisne
Foi a essa altura de desorientação total que precisei encontrar alternativas para me situar naquele mundo, qualquer coisa que me ancorasse em algum lugar. Foi então que pedi papel e caneta para desenhar ou escrever. Fiz um desenho do lugar, detalhado, mas isso não me dizia muita coisa a não ser consolidar aquela imagem. Decidi então começar a escrever uma espécie de memorial, que para mim era muito mais um auto-retrato, do que qualquer imagem apreendida ali. A nova sala era melhor que as anteriores, mais ampla, espaçosa, equipada e tinha um banheiro privativo. Cheguei cedo e mais tarde trouxeram meu comapnheiro de bloco: "Seu" Geraldo. Um homem negro ou mulato, de sessenta e poucos anos, simples, mecânico "mas só de carros velhos". Parece que estava lá desde o dia 06 de novembro. Foi consultar e precisou ficar para fazer não sei quantas safenas. Ficou com um problema num dreno que eliminava constantemente um líquido com bolhas de ar. Pelo menos foi isso que eu entendi. Parecia uma pessoa de boa índole e tinha aquele ar resignado das pessoas simples, que não reclamam, não gemem, não contestam. Estão ali sem nem saber porque. Uma cumplicidade inevitável se estabeleceu entre nós. Algumas vezes tentei interceder por ele junto aos enfermeiros quando achava que as coisas não iam bem. Colocaram uma TV e apesar de eu não gostar de ver, aquilo foi uma espécie de vínculo entre aquele lugar onde eu estava e o mundo real.
Então lembrei de conversas com Roberto Penteado (filho) que havia me dito, com seu jeito sempre muito comedido, "que essas experiências mudavam alguma coisa na vida da gente". Era essa transformação que eu via acontecer em mim naquele momento, quando minhas irmãs vinham me visitar e traziam a lista das pessoas que haviam ligado, ou procurado ou pedido alguma informação ou manifestado alguma forma de solidariedade de qualquer maneira e de qualquer lugar em que se encontrassem, fossem amigos, profissionais ou familiares. Passei a admirar profundamente aqueles profissionais que atuavam ali, com responsabilidade e seridade extremas. Cheguei pensar nos salários que deveriam receber e a responsabilidade que possuiam e lembrei dos muitos "valores" que muitas pessoas que eu conhecia exigiam por muito menos. Na primeira noite que dormi no bloco dos transplantados, com um sonífero muito leve, acordei no meio da noite com a sensação de que era a única pessoa perdida no vazio do universo. Acho que pela primeira vez na vida senti uma real necessidade de toque. Lembrei de uma das primeiras noites em que um fisioterapeuta, Guilherme, baixou a cabeça até a altura da minha, passou a mão no meu braço e sussurrou baixo: "você vai dormir bem Lauer". Aquela sensação foi reconfortante e fez com que eu me sentisse em qualquer lugar da minha vida. Meu médico indicou que eu permanecesse pelo menos uma semana na UPO para avaliar o desempenho dos batimentos cardíacos. Na noite de quarta assisti procedimentos indescritíveis em Seu Geraldo, que como sempre se mantinha sereno como se nada acontecesse, sem reclamar de dor ou qualquer incomodo, até que a equipe médica disse simplesmente: "Seu Geraldo, vamos precisar operá-lo novamente". Resolvi encarar a noite sem soníferos, fosse como fosse. Dormiria quando tivesse sono, e permaneceria acordado quando assim o estivesse. Ali não havia mais uma lógica para o dia ou para a noite. Conversei com Mara, a fisioterapeuta de plantão e foi reconfortante. As psicólogas não apareceram mais. Os momentos mais felizes e esperados passaram a ser os horários de visitas, as sessões de fisioterapia e beber suco ou iogurte. E assim continuaram os dias. Começava a pensar que a vida era uma série de convenções e que eu havia escolhido algumas, um mundo de charme e glamour, do qual não me arrependia. Mas as vezes a gente também precisa ver o outro lado das coisas. Talvez isso não vá nos mudar. Não acredito nesse tipo de "redenção". Mas essas experiências sobrepõe outros sentidos à visão original que tinhamos do mundo. Na manhã seguinte chegou a enfermeira para verificar nossos sinais vitais e trazer o café. Virou-se e perguntou: "O que aconteceu que o senhor está tão triste hoje Seu Geraldo?"
Então lembrei de conversas com Roberto Penteado (filho) que havia me dito, com seu jeito sempre muito comedido, "que essas experiências mudavam alguma coisa na vida da gente". Era essa transformação que eu via acontecer em mim naquele momento, quando minhas irmãs vinham me visitar e traziam a lista das pessoas que haviam ligado, ou procurado ou pedido alguma informação ou manifestado alguma forma de solidariedade de qualquer maneira e de qualquer lugar em que se encontrassem, fossem amigos, profissionais ou familiares. Passei a admirar profundamente aqueles profissionais que atuavam ali, com responsabilidade e seridade extremas. Cheguei pensar nos salários que deveriam receber e a responsabilidade que possuiam e lembrei dos muitos "valores" que muitas pessoas que eu conhecia exigiam por muito menos. Na primeira noite que dormi no bloco dos transplantados, com um sonífero muito leve, acordei no meio da noite com a sensação de que era a única pessoa perdida no vazio do universo. Acho que pela primeira vez na vida senti uma real necessidade de toque. Lembrei de uma das primeiras noites em que um fisioterapeuta, Guilherme, baixou a cabeça até a altura da minha, passou a mão no meu braço e sussurrou baixo: "você vai dormir bem Lauer". Aquela sensação foi reconfortante e fez com que eu me sentisse em qualquer lugar da minha vida. Meu médico indicou que eu permanecesse pelo menos uma semana na UPO para avaliar o desempenho dos batimentos cardíacos. Na noite de quarta assisti procedimentos indescritíveis em Seu Geraldo, que como sempre se mantinha sereno como se nada acontecesse, sem reclamar de dor ou qualquer incomodo, até que a equipe médica disse simplesmente: "Seu Geraldo, vamos precisar operá-lo novamente". Resolvi encarar a noite sem soníferos, fosse como fosse. Dormiria quando tivesse sono, e permaneceria acordado quando assim o estivesse. Ali não havia mais uma lógica para o dia ou para a noite. Conversei com Mara, a fisioterapeuta de plantão e foi reconfortante. As psicólogas não apareceram mais. Os momentos mais felizes e esperados passaram a ser os horários de visitas, as sessões de fisioterapia e beber suco ou iogurte. E assim continuaram os dias. Começava a pensar que a vida era uma série de convenções e que eu havia escolhido algumas, um mundo de charme e glamour, do qual não me arrependia. Mas as vezes a gente também precisa ver o outro lado das coisas. Talvez isso não vá nos mudar. Não acredito nesse tipo de "redenção". Mas essas experiências sobrepõe outros sentidos à visão original que tinhamos do mundo. Na manhã seguinte chegou a enfermeira para verificar nossos sinais vitais e trazer o café. Virou-se e perguntou: "O que aconteceu que o senhor está tão triste hoje Seu Geraldo?"
domingo, 12 de dezembro de 2010
A rotina na UPO
Nos dias seguintes fiquei sabendo que permaneceria na UPO com o gerador externo de batimentos cardíacos até que meu coração alcançasse os índices normais - de 60 a 80 batidas por minuto, eu estava com 45. Isso poderia demorar três dias para os mais pragmáticos, ou até quinze para os mais cautelosos. Começava a tentar me acostumar com a idéia - e até já achava que seria melhor estar com um marcapasso! - e aos poucos me adaptava à rotina daquela cirurgia, que era o resultado de 40 anos de indecisão. Pouco a pouco fui conhecendo as estruturas e papéis hierárquicos claramente definidos naquele ambiente. E todas nuances que matizariam meus dias: as escalas de técnicos, de enfermeiros, de médicos, de fisioterapeutas, do pessoal da limpeza e de "nós", os objetos. A UPO pode ser considerada realmente um não lugar: os pacientes que saem da cirurgia são levados diretamente prá lá para acordar, ser desentubados, terem os sinais vitais avaliados e serem encaminhados para o quarto ou para UTI, dependendo da gravidade. Mas o meu caso foi diferente. Na UPO sentia um misto de dor, angústia e desconforto. Na primeira noite, ou seja, depois da sensação de ter "vivenciado" um dia, não consegui fechar os olhos. Nesse momento, e em minha ingenuidade, cheguei a uma conclusão de que se tratava da impossibilidade de "desintegração do ego". Já havia feito ecercícios respiratórios noutras situações da minha vida, sabia que ajudavam a relaxar, mas nunca tinha exercitado meditação. De maneira que minhas tentativas se mostravam ineficientes: quando começava um exercício respiratório,ou era interrompido pelo sono, mas um sono agitado, ou por alguma visão interna daquele ambiente hostil e totalmente estranho. A respiração era, assim, interrompida por um sobressalto que misturava uma sensação de falta de ar e/ou alguma cena estranha do entorno. Aos poucos comecei a conhecer as pessoas da UPO, os turnos, os grupos, as práticas, e a "comer líquidos". Na noite seguinte pedi para os médicos de plantão algo que me ajudasse a dormir - pensava que poderia ter uma noite tranquila, mesmo enrolado em todos aqueles fios, drenos e tubos enfiados pelo corpo. Não sei se foi a mistura de remédios, algum tipo de interação ou sei lá o que, mas adormeci logo em seguida. Não lembro de ter tomado remédios para dormir alguma vez. Porém, acordei de sobressalto umas três vezez ao longo da noite, sentado na cama e querendo fugir. Uma enfermeira viu e me repreendeu; permaneci na cama me contorcendo de ansiedade e esperando o dia amanhecer. A partir daí essa foi a paradoxal rotina da UPO que durou onze dias: uma sensação de não conseguir - nem querer - estabelecer algum vínculo com aquele lugar de dor e sofrimento, associado a difícil e quase impossível tentativa de resgatar memórias e lembranças de meu mundo anterior, pois, além daquele entorno, havia um desconforto físico contínuo. Na noite seguinte fui trocado de bloco. Me deixaram num bloco mais central de onde via outros três pacientes pós-operatórios. Minha tia foi me visitar e eu solicitei que ela fechasse a cortina de meu bloco, mas a enfermeira informou que o procedimento padrão era as cortinas permanecerem abertas. Nessa noite relatei o problema do sono ocorrido com os remédios para dormir e a medicação foi substituída. Às 5h da manhã eu sonhava quando chegou o técnico com o aprelho de Raio X. Me ergueram, colocaram a chapa fria nas minhas costas, pediram para eu respirar fundo enquanto aquela máquina que parecia saída de uma série de Guerra nas Estrelas subia em minha direção para fazer o exame. Quando o técnico se afastou de mim com aquele robô e me deixou descoberto sobre o leito fui acometido por uma sensação de pânico e terror por não saber o que era sonho ou realidade, até a enfermeira sussurrar no meu ouvido que era um exame, mas que eu também estava sonhando. No dia seguinte, mais uma novidade: seria trocado novamente de bloco. Iria para o bloco dos transplantados, pois era mais reservado e ali eu e outro paciente ficaríamos mais sossegados. "Mais um paciente?" Fiquei incrédulo, pensei nos meus planos de saúde e quase cheguei agitar um "motim" chamando minha família e reivindicando meus direitos! Mas já não entendia bem o que acontecia, então decidi deixar as coisas assim mesmo e ver o que aconteceria...
sábado, 11 de dezembro de 2010
Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas vezes, antes de adormecer - nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior - muitas vezes antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.
A paixão segundo GH, Clarice Lispector.
A paixão segundo GH, Clarice Lispector.
O pacto com a ciência
Acordei e Adriane estava na minha frente: "Tudo bem Lauer? Lembra que combinamos que estaria te esperando? Correu tudo bem na cirurgia". Acho que talvez eu tenha balbuciado algo como "dá notícias pra Lúcia e para o Rogério". Depois, apaguei novamente. Não lembro de ter comido sorvete após ter sido desentubado. Acordei na UPO sentindo uma sede como se fosse a última alma do Sahara. Chamava as enfermeiras que apenas molhavavam minha boca com gaze. Era uma cena bíblica, ancestral, aquela necessidade de água e aquelas gotas pingando na boca. Em dado momento começaram a me dar água para beber. Bebia com tanta avidez que vomitava/espirrava segundos depois. Não me deram mais água e eu roubei um copo. Uma enfermeira viu e pulou em cima de mim. Disse que nem molharia mais minha boca, pois eu "havia feito arte". Reclamei de dor e eles injetaram morfina. Apaguei novamente. Ou permaneci naquele estado letárgico que não se sabe se é sonho ou realidade. Via pessoas passarem prá lá e prá cá, colocavam remédios nos drenos e tiravam sangue para exames. Um anúncio escrito numa porta lateral a minha cama povoou meus olhos durante dois ou três dias que pareceram séculos: ISOLAMENTO. Os leitos eram divididos com paredes de vidro jateado, no interior das quais haviam reproduções de grandes mestres da pintura. Ao meu lado havia um Van Gogh que formava um jogo de reflexos com a palavra ISOLAMENTO que era lida em todos os sentidos e direções possíveis. Começaram as visitas do cirurgião e da família. No domingo à tarde um médico de plantão, que me parecia um garoto, veio até mim e disparou à queima roupa: "você ainda está com o marcapasso mas seu coração não retomou seu ritmo. Se isso persistir nós precisaremos instalar um marcapasso definitivo!!!" Aquilo caiu como uma bomba!!! Minhas irmãs foram me visitar e pedi para que avisassem ou chamassem todos meus amigos médicos. Duas horas depois o Dr. Roberto Oliveira, primo de meu pai, estava lá mas eu permanecia inconformado por trocar seis por meia dúzia: uma doença assintomática, por uma cura que exigiria muito mais cuidados e atenções!
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
A chegada
25 de novembro de 2010. Cheguei ao Instituto de Cardiologia de Porto Alegre às 9h, vestindo calça A|X, tênis Nike, Pólo Ralph Lauren branca e óculos D&G. Minha mãe, irmã e cunhado já me aguardavam na construção tipicamente anos 80 do IC. Em seguida chegaram mais tios e tias. Preenchi os documentos para dar entrada no hospital e fomos conduzidos ao quarto 302/sul. Era um quarto de frente para Rua Princesa Isabel e com uma árvore bem à altura da janela. Trabalhei alucinadamente em meu laptop programando ações para minha ausência, respondendo e-mails e telefonemas. Ao longo do dia passaram nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, anestesista e cirurgião para prestar esclarecimentos sobre a cirurgia. Estava tranquilo e determinado. imaginando as dificuldades que me aguardavam nos próximos dias. Muitos exames ao longo da tarde. À noite, antes de dormir, passou uma enfermeira para raspar meus pêlos do corpo, dar as instruções para o banho e fazer a higiene pré-cirúrgica. Dormi tranquilo. Minha mãe ficou no hospital e às 6h30min fomos despertos por Adriane Mitidieri e Gua Vianna. Logo em seguida chegou a enfermeira e continuaram a chegar outros familiares. Eu havia sido taxativo com todos de que não queria cenas dramáticas. E que não queria visitas na UPO - Unidade Pós Operatória. E que gostaria de que quem viesse ao hospital estivesse praticamente em traje de festa! (Depois entendi que todas as restrições que fiz, referiam-se ao fato de que não querer que os outros sofressem por mim. muito provavelmente eles sabiam que eu iria passar, mas esse seria um momento meu).
Adriane me acompanhou junto à maca até as portas da sala de cirurgia. Suas palavras, como sempre, foram confortantes. Ao entrar no bloco cirúrgico a anestesista se apresentou, segurou meu braço, e me encaminhou para um local onde acho que foi a cirurgia. Disse: "Lauer, eu vou pegar uma artéria no seu pulso. Isso dói, mas passa logo". Senti a agulha e ela disse para sua assistente: "Essas artérias que dançam, são impossíveis. Vou ter que pegá-la por cima". Apaguei.
domingo, 19 de setembro de 2010
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Mishima - O Pavilhão Dourado
"... pois a simples obstinação pela beleza leva as pessoas ao encontro da mais sombria das ideologias deste mundo, sem que elas se deem conta disso. Quem sabe o homem não tenha sido feito para ser assim?"
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
"Todo aquele que não consegue fazer frente à vida enquanto está vivo precisa de uma das mãos para afastar parte do desespero que sente perante o seu destino - com pouco êxito -, mas com a outra ele pode anotar o que observa entre as ruínas, porque é capaz de ver qualquer coisa diferente (e muito mais) do que os outros vêem; apesar de tudo, mesmo morto durante a vida, ele é o verdadeiro sobrevivente". Franz Kafka in Diaries of Franz Kafka. Extraído de Andy Warhol, Cinemateca Portuguesa, julho de 1990.
O começo
Bem, vamos tentar.
Vou começar explicando o que me fez iniciar um blog. O que nada mais é do que uma tentativa de me convencer de que, de fato, isto vai ter algum sentido para mim...
Trabalho com arte. Ou melhor, tenho formação artística - graduado em pintura, mestre em artes visuais, doutor em comunicação e semiótica - mas hoje me dedico mais a administração (!), uma vez que me tornei diretor do Instituto de Artes e Design da UFPEL. Então meu tempo para produzir arte foi se tornando mais escasso. São escolhas que se faz. De vez em quando - quando as coisas parecem se tornar mais difíceis - parece que "ter produzido alguma coisa (alguma forma de arte)" é o que garantiria algum sentido a existência. Mas enquanto a gente consegue manter esses momentos à distância, continuamos ocupando o tempo com as rotinas cotidianas que fazem passar o tempo sem que a gente perceba.
Então gosto de ler. Gosto de dialogar mentalmente com alguns sujeitos que, de uma maneira breve, costumam nos contar alguma coisa no meio do turbilhão de informações cotidianas. Leituras curtas e suscintas, mas de profissionais. De vez em quando me surpreendo elaborando alguns pensamentos que tem quase a forma dessas crônicas que as vezes leio e com quem consigo esses diálogos. Obviamente nunca vou ter tempo para me dedicar a escrever "de verdade". Isso exigiria tanto compromisso. Já tentei uma oficina de criação literária, mas não consegui ir adiante. Outra vez tentei começar a escrever um diário, mas esbarrei na justificativa que queria dar para o fato de estar escrevendo. Foram duas páginas de uma escrita verborrágica e tão chata que me fez desistir. Agora vou passar logo esta parte para ver se, daqui a pouco, começo a contar coisas. E vamos ver o que vai sair. Não custa tentar. Vai ser como escrever um e-mail para um amigo, que é uma coisa que faço diariamente, só que não vai ser para uma pessoa específica. Vai ser para uma mistura de todos, um pouco de cada. Um patchwork. Um treinamento. Um exercício coletivo. E talvez agora pelo menos eu tenha paciência para me ler e ver o que sobrou.
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