quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
A espera
Acabou o assunto. Mas, seja lá como for, escrever ainda é uma das coisas que tem me ajudado a retomar a vida no ritmo possível. Como havia afirmado, e volto a fazê-lo, a sensação que melhor define o estado de alguém - digo isso por mim - que acabou de passar por uma cirurgia de proporções razoáveis é de "estranhamento". Não se tem muita certeza se se está bem, se os desconfortos ainda são seqüelas da cirurgia, se alguma coisa não está bem e poderá se agravar ou se a vida vai ficar igual, pior ou melhor ao que era antes. A gente está com um corpo meio novo, com o qual ainda não estava acostumado. Isso no plano bem concreto. Num grau mais abstrato ou metafísico a idéia de ter estado conscientemente próximo da morte aumenta ainda mais essa sensação de estranhamento. Antes dessa experiência da cirurgia - e depois dela também - sempre pensei da seguinte maneira: viver é um estado de risco permanente, mas a gente não pensa nisso. Cada vez que vou ou volto de carro de Pelotas para Porto Alegre cruzo na estrada com mais de uma centena de veículos que vão no sentido oposto, cujo motorista desconheço, assim como as condições mecânicas do carro ou o que mais possa colocar minha vida em risco. E os jornais estão recheados de casos de automóveis que "se desgovernaram", invadiram a pista oposta e estraçalharam o coitado que vinha feliz da vida e sem fazer nada errado. É o princípio do acidente. Alguma coisa não prevista acontece de maneira inesperada causando - geralmente - um estrago. Mas a gente não pensa nisso cada vez que vai na padaria, senão ficaria em casa - de preferência no campo e com um pára-raios! - para evitar qualquer fatalidade. Lembro da entrevista de algum daqueles artistas que morreu no final dos anos 1980 ou início dos 1990, no auge da AIDS, falando mais ou menos a mesma coisa: que todo mundo um dia morreria, mas estar com AIDS era conviver com essa idéia diariamente, a cada minuto. E de fato, estar com AIDS naquela época era estar na fila de entrada para o cemitério! E é mais ou menos essa a sensação de passar por uma experiência de risco conscientemente. Mas talvez tudo isso venha à tona pelo simples motivo de estar tentando fazer a vida voltar ao "normal", ou melhor, voltar ao cotidiano. A gente sai do hospital, o médico nos manda pra casa fazer repouso, ficar quieto e esperar. E essa é a coisa mais difícil: esperar. Como hoje tudo é rápido, instantâneo e possível, esperar virou um martírio. Haja livro, filme ou You Tube que saciem nossa ansiedade. Nada adianta, nada acelera. E é assim mesmo. E tem que ser. Lembro que um dia fui visitar a plantação de Fred Karam. Ele planta diversas espécies de palmeiras incríveis e me contou sobre o quão diferente era a noção de tempo do universo daquelas palmeiras para o mundo em que vivemos! Perguntei para ele como se "fazia" uma palmeira e ele me disse que através da semente, que é aquele coquinho que tem dentro do butiá. Ele pode demorar sei lá quantos meses pra germinar, e mais muitos outros até nascer a primeira folha, e por aí vai uma conta a perder de vista. Assim, nosso corpo também tem lá suas restrições e exigências, apesar dos avanços científicos. Lembro também de uma conversa sobre procedimentos cirúrgicos ou odontológicos que estava tendo com um grupo de amigos quando exclamei que, apesar de todos esses avanços, tais procedimentos ainda eram muito arcaicos. Ao que Daniel Acosta simplesmente rebateu: "arcaico é o corpo". E é. Então cá estou eu, reclamando como se fosse o único ser vivo que precisou passar por uma cirurgia, e como se tivesse sido a cirurgia mais grave do mundo, quando centenas e milhares de pessoas fazem isso e coisas bem mais complicadas todos os dias. Mas, cada um pensa ou tenta elaborar essa experiência do seu jeito. E o meu talvez seja percebendo apenas o óbvio e tendo que enfrentar essa ansiedade da reconquista de um cotidiano no qual já estava viciado, sem perceber. Só agora pude ver na minha frente, por exemplo, uma estante abarrotada de livros que fui comprando "para um dia que tivesse um tempinho ler". E ali estão todos, sem conseguir me arrebatar. Peguei um deles. Já lido e relido. Adoro rever coisas que gosto. Compro filmes e vejo várias vezes, releio textos ou artigos. Até mesmo e-mails. O livro que peguei chama-se "Corpo e sentido". Trata-se de uma coletânea de artigos de semiótica, dentre os quais um de um autor que admiro muito e que felizmente tive a oportunidade de conhecer e manter contato: Eric Landowski. O artigo chama-se "Viagem às nascentes do sentido" e é bastante elucidativo no que diz respeito à relação que mantemos com nosso corpo e com a ciência. À tarde, retomei as sessões de fisioterapia com um novo fisioterapeuta em Pelotas. Foi um bom momento do dia. À noite, minha mãe veio ao apartamento e montou a árvore de Natal e isso também foi ótimo. Sob a árvore, coloquei os vários presentes e recados e mensagens que as pessoas me trouxeram nas últimas semanas. E assim vai-se construindo essa espera até o dia em que não se perceba mais nada e o cotidiano apenas flua com todos os mesmos problemas e conflitos de sempre.
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