segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O vôo do cisne

Foi a essa altura de desorientação total  que precisei encontrar alternativas para me situar naquele mundo, qualquer coisa que me ancorasse em algum lugar. Foi então que pedi papel e caneta para desenhar ou escrever. Fiz um desenho do lugar, detalhado, mas isso não me dizia muita coisa a não ser consolidar aquela imagem. Decidi então começar a escrever uma espécie de memorial, que para mim era muito mais um auto-retrato, do que qualquer imagem apreendida ali. A nova sala era melhor que as anteriores, mais ampla, espaçosa, equipada e tinha um banheiro privativo. Cheguei cedo e mais tarde trouxeram meu comapnheiro de bloco: "Seu" Geraldo. Um homem negro ou mulato, de sessenta e poucos anos, simples, mecânico "mas só de carros velhos". Parece que estava lá desde o dia 06 de novembro. Foi consultar e precisou ficar para fazer não sei quantas safenas. Ficou com um problema num dreno que eliminava constantemente um líquido com bolhas de ar. Pelo menos foi isso que eu entendi. Parecia uma pessoa de boa índole e tinha aquele ar resignado das pessoas simples, que não reclamam, não gemem, não contestam. Estão ali sem nem saber porque. Uma cumplicidade inevitável se estabeleceu entre nós. Algumas vezes tentei interceder por ele junto aos enfermeiros quando achava que as coisas não iam bem. Colocaram uma TV e apesar de eu não gostar de ver, aquilo foi uma espécie de vínculo entre aquele lugar onde eu estava e o mundo real.
Então lembrei de conversas com Roberto Penteado (filho) que havia me dito, com seu jeito sempre muito comedido, "que essas experiências mudavam alguma coisa na vida da gente". Era essa transformação que eu via acontecer em mim naquele momento, quando minhas irmãs vinham me visitar e traziam a lista das pessoas que haviam ligado, ou procurado ou pedido alguma informação ou manifestado alguma forma de solidariedade de qualquer maneira e de qualquer lugar em que se encontrassem, fossem amigos, profissionais ou familiares. Passei a admirar profundamente aqueles profissionais que atuavam ali, com responsabilidade e seridade extremas. Cheguei pensar nos salários que deveriam receber e a responsabilidade que possuiam e lembrei dos muitos "valores" que muitas pessoas que eu conhecia exigiam por muito menos. Na primeira noite que dormi no bloco dos transplantados, com um sonífero muito leve, acordei no meio da noite com a sensação de que era a única pessoa perdida no vazio do universo. Acho que pela primeira vez na vida senti uma real necessidade de toque. Lembrei de uma das primeiras noites em que um fisioterapeuta, Guilherme, baixou a cabeça até a altura da minha, passou a mão no meu braço e sussurrou baixo: "você vai dormir bem Lauer". Aquela sensação foi reconfortante e fez com que eu me sentisse em qualquer lugar da minha vida. Meu médico indicou que eu permanecesse pelo menos uma semana na UPO para avaliar o desempenho dos batimentos cardíacos. Na noite de quarta assisti procedimentos indescritíveis em Seu Geraldo, que como sempre se mantinha sereno como se nada acontecesse, sem reclamar de dor ou qualquer incomodo, até que a equipe médica disse simplesmente: "Seu Geraldo, vamos precisar operá-lo novamente". Resolvi encarar a noite sem soníferos,  fosse como fosse. Dormiria quando tivesse sono, e permaneceria acordado quando assim o estivesse. Ali não havia mais uma lógica para o dia ou para a noite. Conversei com Mara, a fisioterapeuta de plantão e foi reconfortante. As psicólogas não apareceram mais. Os momentos mais felizes e esperados passaram a ser os horários de visitas, as sessões de fisioterapia e beber suco ou iogurte. E assim continuaram os dias. Começava a pensar que a vida era uma série de convenções e que eu havia escolhido algumas, um mundo de charme e glamour, do qual não me arrependia. Mas as vezes a gente também precisa ver o outro lado das coisas. Talvez isso não vá nos mudar. Não acredito nesse tipo de "redenção". Mas essas experiências sobrepõe outros sentidos à visão original que tinhamos do mundo. Na manhã seguinte chegou a enfermeira para verificar nossos sinais vitais e trazer o café. Virou-se e perguntou: "O que aconteceu que o senhor está tão triste hoje Seu Geraldo?"

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